Opinião
Médicos trabalhando: dois alertas
Por Paulo Rosa
Médico do SUS, Hospital Espírita, Sociedade Científica Sigmund Freud
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Sempre lavamos a alma quando conseguimos trabalhar sob o espírito de Hipócrates. Sua visão ampla, sensível, descendo aos detalhes do que se ouve do paciente, - “aquele que sofre” -, e de seus circunstantes, a observação pormenorizada do corpo, da alma e do entorno de quem nos consulta, pode levar-nos, guiados pelo grego, a diagnósticos mais precisos e, consequência, a tratamentos mais adequados. O sábio de Cós, com a tecnologia atual seria um balaço, na expressão pampeana. Ele sugere, quero crer, ao longo dos setenta volumes da Coleção Hipocrática, que o paciente pode contribuir com seu médico em não lhe sendo submisso, agindo, ao contrário, de modo questionador, inquiridor, perguntador, tudo querendo saber, mesmo, no mundo de hoje, após consultar à internet. Quem pode estar mais interessado em sua doença se não o próprio? Paciente condescendente, que docilmente tudo aceita do esculápio, redobra-nos o trabalho.
Aos alertas. O primeiro vem com a “pena da galhofa”, do inalcançável Machado de Assis. Gosto da produção teatral do príncipe negro da literatura mundial, em especial da peça Não consultes médico, de 1910. Nesta comédia-trágica o Bruxo do Cosme Velho, depois de criticar a facilidade com os médicos receitam numerosas pílulas para todos os males, do corpo e da alma, a personagem D. Leocádia, atribuindo-se como capaz de curar os males do sofrimento moral melhor que os profissionais, recomenda longas viagens a terras distantes e trabalhos beneméritos aos sofredores, de modo que costumava indicar ao enfermo: “vá pregar aos infiéis na China, em dez anos estará curado”. Ao concluir a peça, traz-nos um suposto pensamento grego - suponho seja invenção de Machado - induzindo o paciente a “não consultes médico, consulta a alguém que tenha estado doente”.
O segundo alerta vem de outro tipo sagaz, o jovem Nietzsche. Em seu Aurora, de 1881, aforismo 322, ele diz: “Viver sem médico, se possível”. Quer me parecer que um doente é mais leviano quando tem um médico do que quando cuida ele próprio de sua saúde. No primeiro caso, basta-lhe seguir rigorosamente as prescrições; no segundo, temos uma visão mais conscienciosa daquilo que objetivam essas prescrições, a nossa saúde, e notamos bem mais, ordenamos e proibimos bem mais a nós mesmos do que faríamos por causa do médico. Todas as regras têm o efeito de distrair da finalidade por trás da regra e tornar mais leviano. E a que nível de descontrole e destruição não chegaria a leviandade dos homens, se eles deixassem nas mãos da divindade, como nas de seu médico, segundo a expressão “como Deus quiser”’.
Essa dupla de céticos, Nietzsche e Machado, puxam parelho quando de médicos eles tratam. Como que criam um manual, algo como Médicos: modo de usar, o que vejo de utilidade para esculápios em ação. Antídotos a involuntários e inevitáveis deslizes. Só não erra quem não clinica.
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